Palestino relata o sofrimento de morar em Gaza sob intenso ataque de Israel, com racionamento de água, comida e eletricidade
Depoimento de Ayman Fahmi Nimer à repórter Mariana Queiroz Barboza
A escalada da violência entre o Exército de Israel e o Hamas, facção islâmica que controla a Faixa de Gaza, atingiu um novo pico na semana passada. A ação das forças israelenses se intensificou. Foi bombardeada uma escola que era usada como abrigo pela Organização das Nações Unidas, matando pelo menos 16 pessoas, inclusive funcionários da ONU. Sem acordo para um cessar-fogo, o número de vítimas fatais entre os palestinos ultrapassou 800 – a maioria civis, entre eles, muitas mulheres e crianças. Israel teve 35 mortos. O lançamento de mais de dois mil foguetes do Hamas provocou o cancelamento de voos internacionais a Israel, no que os israelenses classificaram como um “prêmio ao terrorismo”. Sob o medo de novos ataques e com o racionamento de água, comida e eletricidade, a vida em Gaza ficou ainda mais dramática. Na noite da quinta-feira 24, o palestino Ayman Fahmi Nimer, que mora no centro da cidade de Gaza, falou com a ISTOÉ poucas horas depois que um prédio vizinho foi bombardeado. Abaixo, está seu depoimento:
POPULAÇÃO EM PÂNICO
Mulher palestina se desespera em prédio atingido pelos mísseis
lançados por Israel. Civis são as principais vítimas dos ataques
“Viver com o barulho dos bombardeios é assombroso. Em Gaza não temos nenhuma espécie de esconderijo para a população, como há em muitas cidades do Oriente Médio. Vivemos esperando o desconhecido. Não sabemos quando isso vai acabar. É um filme de terror sem fim. Para mim, é muito difícil olhar para minhas filhas enquanto as bombas caem aqui perto, sabendo que não posso fazer nada para protegê-las. Ficamos todos reunidos, a maior parte do tempo, perto da porta de entrada e da escada para sairmos em caso de emergência. Comemos aqui e dormimos no chão. Só nos movimentamos para ir ao banheiro. Passamos o tempo conversando, falando sobre o futuro, lendo, brincando com nossos gatos. Sou como um ator. Estou triste por dentro, mas finjo que está tudo bem. Não quero pensar muito, porque, quando o faço, espero o pior. Não durmo mais de duas horas seguidas há 18 dias. É impossível dormir à noite, fico esperando mais bombardeios. Os mísseis iluminam o céu escuro. Sob as bombas, sem sono, vivo como um zumbi. Não consigo focar em nada. Minha mulher mantém perto dela uma bolsa com documentos importantes: passaporte, cartão do banco, escritura do apartamento.
Estou em casa com minha mulher e minhas três filhas agora. Saí há pouco para comprar comida. Estamos no Ramadã, um mês sagrado para muçulmanos do mundo todo, no qual fazemos jejum até o sol se pôr. Acabamos de fazer nossa primeira refeição. Vivo com minha mulher, Heba, e nossas filhas, Lama, de 16 anos, Menna, 14, e Mesma, 13, num apartamento de três quartos no coração de Gaza, no último piso de um prédio relativamente alto, de sete andares. Isso me dá a oportunidade de ver o que está acontecendo em boa parte daqui. Como faz muito calor, mantenho todas as janelas abertas.
Tenho sorte de ter uma família relativamente pequena. Os árabes gostam de ter muitos filhos, mas eu não quero mais, porque é muita responsabilidade. Um pai tem que prover abrigo, água, comida e segurança para seus filhos. Mas, em Gaza, é completamente diferente por causa da contínua disputa entre israelenses e palestinos por território. Minhas filhas passaram boa parte de sua infância durante guerras. Elas não sabem o significado de paz. Elas não sabem nem o que é paz de espírito. Sou muito preocupado com o futuro delas. Eu sou farmacêutico, tenho um bom emprego e uma renda relativamente alta. Minha família é muito feliz. Para nossa sorte, as aulas na escola das meninas acabaram há um mês. Estamos agradecidos a Deus que elas não tiveram que ficar ausentes das aulas.
DESTRUIÇÃO
A Faixa de Gaza está sob bombardeio há três semanas.
Quase 800 palestinos já morreram
Toda a Faixa de Gaza é uma fração da cidade de São Paulo. Por isso, quase todo mundo se conhece. Com mais de 800 mortes, em cada vizinhança, existe alguém que perdeu parentes ou amigos. Isso é muito triste. Mas é interessante notar como as pessoas ficam ainda mais unidas. Em volta das mesquitas, elas compartilham sua comida, o pouco de água que têm. Elas não têm nem certeza se viverão para desfrutar daquilo. Eu também não sei se estarei vivo amanhã.
O dinheiro não tem valor nenhum, porque os mercados e as lojas estão fechados. Alguns fazendeiros se reúnem em volta das mesquitas. As pessoas vão lá para as orações da tarde e encontram os fazendeiros vendendo legumes que eles mesmos produzem. Hoje comprei tomates, batatas, cebolas e pimenta. É difícil encontrar comida fresca. Também temos um problema com água potável. Nós juntamos garrafas vazias de Coca-Cola e Seven-Up e levamos à rua para enchê-las. Dividi minhas últimas quatro garrafas d’água com minha mãe, então preciso sair amanhã e procurar mais. Não é tão difícil assim encontrar, o pior é trazer para casa. Tenho que pegar o máximo de galões que conseguir carregar nas costas. Tenho também um estoque de alimentos não perecíveis, como feijão, arroz e açúcar, para emergências como essa. Gostamos de estar preparados, porque nunca sei quando tudo isso vai recomeçar. Eu diria que 99% das lojas e restaurantes estão fechados. Há pequenas lojas familiares no térreo das casas, onde posso bater na porta e comprar alguma coisa.
No Ramadã, nós jejuamos por 16 horas. Isso é bom porque, durante a noite, ninguém consegue comer e beber tanto. Nos conflitos de 2008 e 2009, foi pior. Eles começaram a atacar em dezembro e a temperatura era muito baixa. Precisávamos de mais comida e mais energia elétrica para nos manter aquecidos. Agora temos energia por duas horas diárias, em média. Há dias em que não há nada. É horrível, porque precisamos de energia para tudo, para acompanhar as notícias, as redes sociais, falar com nossos familiares. Sem eletricidade, me sinto cego.
POR TERRA
Tanques israelenses avançam pela fronteira, ao norte
da Faixa de Gaza. Os ataques ocorrem também por ar e mar.
Os israelenses enviam comunicados em panfletos, SMS, ligações telefônicas. Eu recebi uma mensagem gravada, mas, na área em que moro, não nos dizia para deixar nossas casas. Pelo contrário, eles querem que as pessoas se concentrem aqui. O meu bairro é mais seguro que o resto da cidade, mas, ainda assim, há bombas por todo lado. Na mensagem que ouvi, eles explicaram que essa operação é contra o Hamas, não contra os civis. Hoje um prédio vizinho, a 100 metros da minha casa, foi bombardeado por um míssil. Tivemos que descer as escadas correndo e isso foi muito difícil, porque, depois da explosão, uma quantidade enorme de poeira escureceu tudo ao redor. Esperamos três horas na frente do prédio até que pudéssemos voltar. Felizmente ninguém morreu. Você consegue ouvir isso? (O barulho de uma explosão encobre a voz de Ayman) Passou bem pela minha cabeça. Se tiver que deixar minha casa, não tenho para onde ir. Nenhum lugar é seguro.
Eu sempre fui um pregador da paz, mas agora, se tivesse um míssil em minhas mãos, o atiraria contra Israel. Pelo menos eu morreria de uma forma digna. Israel tem um dos maiores Exércitos do mundo e nós, palestinos, não temos nada. Para muitos palestinos, não há oportunidade nem esperança. Então, se tiverem de morrer, que morram lutando. Mas não gostamos de morrer, gostamos de viver em estabilidade. Nós deveríamos ter nosso Estado. Eu sou contra o Hamas, mas posso dizer: o Hamas não usa as pessoas como escudo humano, como diz Israel. Há 18 anos vivendo aqui, eu nunca vi um único militante nas ruas. Eles estão todos debaixo da terra (em túneis). Nas ruas, só se pode ver homens segurando sacolas de comida a caminho de casa. Não há mulheres nem crianças. Além de ser muito perigoso dirigir, não há postos de gasolina abertos, então todos andam a pé. O Hamas acredita que as negociações de paz não são a língua que os israelenses entendem. Os israelenses só entendem a língua da violência, matam por vingança. Eu tenho simpatia pelo Mahmoud Abbas (presidente da Autoridade Palestina), mas ele não atingiu nada até agora, todas as negociações falharam. Abbas precisa ouvir mais seu próprio povo. É urgente uma reconciliação entre o Hamas e os outros grupos políticos por uma Palestina unida. Talvez a resistência seja a última reserva que os palestinos tenham para atingir seus objetivos.”
Fotos: Mohammed Salem/REUTERS, Hatem moussa/AP Photo; Ronen Zvulun/REUTERS - fonte: ISTOÉ Independente
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